A Esperança do Reencontro

Enrico ManciniJunho 5, 2024

Era começo da Pandemia, em 2020, e decidi que iria me ocupar expandindo meu repertório cinematográfico. Tinha 17 anos, acabado de me matricular em uma universidade de cinema, e minha cinefilia já iniciada pedia prolongamentos mais profundos.

Em algum lugar, esbarrei com uma lista de 30 filmes italianos que todos deveriam ver, ou algo que o valha. Talvez fosse uma seleção de Scorsese, mas não o garanto. Fato é que segui aquela lista, ao menos nos primeiros dias.

E em um desses dias iniciais, interrompi a experiência de um filme no meio. Nem lembro porquê. Era um filme bem humorado, bastante promissor. Fato é que, depois das primeiras cenas, parei de assisti-lo. Naquela época não utilizava o Letterboxd, ferramenta que se mostrou útil acima de tudo para catalogar filmes no diário à medida em que eu os assistia. O tempo passou na interminável Pandemia no Brasil – permitida e gerenciada pelo então presidente Jair Bolsonaro, um criminoso – e eu ia assistindo cada vez mais filmes, e naturalmente me esqueci daquele filme italiano antigo. Na verdade não. Na verdade, uma imagem permaneceu.

Era de um homem que estava preso, em uma visita com a namorada. Porém não se tratava de um espaço de visitas comum. Víamos o homem em um plano médio e através de uma grade de metal esburacada, por onde ele gritava para poder ser ouvido. Gritava porque a namorada ficava distante, distanciada por outra grade, e porque outros presos também faziam visitas naquele espaço sem divisórias. Os homens se acotovelavam, tentando entender o que suas respectivas visitas diziam, em um lugar barulhento. Lembrava-me que a encenação do ator era espalhafatosa e cômica, e que a namorada parecia jovem e bonita demais para ele. Ela aparecia em contracampo, também em plano médio. Atrás deles apenas uma parede. Depois de alguns anos dessa imagem na cabeça, da vontade de descobrir qual filme se tratava, acabei me deparando com ele. Trata-se I Soliti Ignoti, mais conhecido como Big Deal on Madonna Street (1958), o filme mais visto de Mario Monicelli. Reproduzo as imagens que descrevi abaixo.

Não me lembrava que os enquadramentos incluíam outras pessoas, nem da presença de um advogado. Mas isso pouco importa. A proposta dessa curta crônica é compartilhar a alegria que foi redescobrir essa cena, mesmo sem tê-la procurado. Alguma parte de mim sabia que eu a (re)encontraria.

Dessa forma, atesto que Godard estava certo no que disse sobre Hitchcock em seu Histoire(s) du Cinéma, e que isso não se aplica só a ele.

Ninguém lembra como Joan Fontaine foi parar na beira de um penhasco. E o que Joel McCrea foi fazer na Holanda. E qual era o segredo guardado a sete chaves por Montgomery Clift. E por que Janet Leigh se hospeda no Bates Motel. E por que Theresa Wright continua apaixonada pelo Tio Charlie. Esquecemos o crime pelo qual Henry Fonda não era inteiramente culpado. E por que exatamente o governo americano contratou Ingrid Bergman. Mas nos lembramos de uma bolsa. Mas nos lembramos de um ônibus no deserto. Mas nos lembramos de um copo de leite, da hélice de um moinho, de uma escova de cabelo. Mas nos lembramos de garrafas enfileiradas, de um par de óculos, de uma partitura musical, de um molho de chaves. Porque através deles e com eles Hitchcock triunfou lá onde Alexandre, Júlio Cesar, Hitler e Napoleão fracassaram: em tomar o controle do universo. Tomar o controle do universo… Talvez umas 10 mil pessoas se lembrem da maçã de Cézanne. Mas 1 bilhão de espectadores se lembram do isqueiro de Pacto Sinistro*. E se Hitchcock é o único poeta maldito a ter conhecido o sucesso, é porque ele foi o grande criador de formas do século XX, e são as formas que nos dizem, afinal, o que há no fundo das coisas.”

Para concluir: ainda resta uma cena a ser descoberta. Tenho quase certeza que outro filme italiano. Trata-se de uma câmera apontando para o teto de uma casa (não uso mais plongée nem contra-plongée), acho que uma casa suburbana, em que uma família está prestes a mudar. A película era em cores, lembro-me da forma como a luz contornava os espaços do teto, um tom terroso me vem à mente?. Acho que havia uma criança. Talvez a câmera se movesse (ou isso é só criação da minha cabeça). Espero ansioso por esse próximo encontro, agora com essa cena. Inclusive, se você leu até aqui, e reconheceu a cena descrita no parágrafo acima, sinta-se livre para me contactar. Ou eu que a reecontre sozinho. Talvez seja melhor. No fim das contas, não ter tudo organizado em um diário digital permite esses momentos. E é desses momentos que quero viver.

 * Strangers On a Train / O Desconhecido do Norte Expresso (1951)

Enrico Mancini