A Construção e a Desconstrução Britânica de “Kind Hearts and Coronets” (1949), de Robert Hamer

Hugo DinisFevereiro 18, 2025

 

I shot an arrow in the air; she fell to earth in Berkeley Square

 

Por aquela altura já a cena tem um ar de familiaridade. Louis Mazzini (Dennis Price), o filho de uma mulher deserdada em virtude do casamento com um cantor de ópera italiano, atira sob o balão de ar de Lady Agatha D’Ascoyne, apenas mais uma de oito pessoas no caminho de Louis rumo ao título de Duque D’Ascoyne. A sua morte seria acompanhada de mais uma entrada no livro de memórias de Louis, redigido na expectativa do cadafalso, à imagem do que já tinha acontecido aquando da queda do barco a remos do seu primo e respectiva amante barragem abaixo, durante um fim de semana romântico na exclusiva estância de Maidenhead. “I was sorry about the girl”, relembra Louis, “but found some relief in the reflection that she had presumably during the weekend already undergone a fate worse than death”.

 

A árvore familiar os D’Ascoynes, o alvo de Louis, na vingança ou na procura de estatuto

 

Kind Hearts and Coronets (1949), de realização de Robert Hamer e marca de produção da Ealing Studios, faz da repetição do absurdo uma forma de catarse social, um pouco à imagem do que Harold Ramis fez com Groundhog Day (1993), até pela forma como as mortes se sucedem de forma relativamente limpa e arrumada, sempre com o mesmo alvo: Alec Guinness. O celebrado actor de palco inglês, mais tarde popularizado pelo papel de Obi-Wan Kenobi em Star Wars: A New Hope (1977), morre por oito vezes pela pena, mas nunca pelas mãos de Dennis Price, em Kind Hearts and Coronets. Contudo, ainda que a sua representação de diferentes facetas da nobreza inglesa antiga seja marcadamente pautada por um certo surrealismo de carácter, Guinness nunca faz passar a ideia ao espectador de que é ele que morre vezes e vezes de seguida. Seja enquanto clérigo pomposo e fastidioso, almirante de marinha estóico, que insiste em ir abaixo com barco, activista pelos direitos das mulheres, ou duque de inflexível sentido de classe, Guinness desconstrói aos poucos as diferentes formas de aristocracia britânica.

Pela sua estrutura narrativa confessional, Kind Hearts and Coronets imagina uma admissão de culpa fria e calma, com toda a naturalidade de um chá de meio da tarde de fim de semana. Louis Mazzini conta a sua história na expectativa de uma morte anunciada e um volte face ansiado, mas Hamer não concebe tanto a tortuosa confissão de Bresson em Pickpocket (1959), ou aquelas sucessivas de Schrader, por ela inspiradas, nem tão pouco as explorações de carácter de indivíduos em redes criminais como as de Pileggi e Scorsese em Goodfellas (1990) e Casino (1995), por exemplo. Da mesma forma que Guinness vai morrendo das formas mais inusitadas possíveis, Dennis Price vai matando sem sujar a camisola ou espalhar uma gota de sangue que seja. Há algo de profundamente inglês na função tonal que Hamer concede a Price em particular: a leveza e a graciosidade com que os assassinatos são levados a cabo, a par do trato impecável de Mazzini e da performance airosa e elegante de Price, não só permitem desconvocar o sinistro das mortes, como humanizar e satirizar o próprio assassino.

É nesta perspectiva que a ambivalência perante a morte surge como representativa não só dos cineastas como do zeitgeist britânico. Em 1949, na penumbra do pós-guerra, a lentidão da recuperação económica é sentida pelo povo britânico especialmente à luz de uma classe nobre perpetuamente poderosa e que aparentava não ter sentido na guerra as mesmas repercussões percepcionadas pela opinião pública. A prova disso é a pressão popular para o anúncio da introdução de impostos sobre a fortuna não-produtiva em territórios britânicos pelo ministério das finanças, na ordem dos 75%, a abranger todas as propriedades avaliadas acima do milhão de libras. Este ressentimento surge como a principal força motriz para Hamer, mas sempre no contexto da Ealing Studios, uma espécie de Brill Building britânica, que procurava concentrar profissionais de cinema na execução de projectos conjuntos sob a liderança da figura providencial de Michael Balcon. A Ealing viria a ser vendida apenas seis anos depois de Kind Hearts and Coronets, com Balcon a afixar a inscrição na parede das instalações de que ali se teriam feito filmes que procuravam projectar a Grã-Bretanha e o carácter britânico. Veja-se uma das cenas iniciais, em que o carrasco de Louis interroga o guarda prisional sobre a forma correcta de se dirigir ao preso, até porque este nunca teria executado um duque.

Mas esta iconoclastia de Hamer é constantemente acompanhada por uma desconstrução de Louis e dos seus motivos. Com efeito, a motivação de Louis não se prende com a obliteração da nobreza britânica e dos seus privilégios abusivos. Mazzini está longe de ser uma espécie de figura de justiça social. Antes pelo contrário, é o seu desejo de promoção social, de pertença a essa classe privilegiada, e sobretudo de vingança pelo destrato da própria mãe enquanto membro dos D’Ascoynes que leva Louis a agir. A gota de água é a rejeição amorosa da sua sedutora amiga de infância Sibella (Joan Greenwood), que opta pelo casamento com o desprezível Lionel (John Penrose), um pequeno burguês comerciante, com a perspectiva de que Louis poderia um dia ser um duque da mesma forma que “pigs might fly”. A relação entre Sibella e Louis serve como abandono do passado para ambos. À medida que a vaga de assassinatos de Louis vai tendo lugar, também este se vai parecendo mais como um dandy da alta sociedade britânica, com guarda-roupa crescentemente barroco, em concomitância com o seu estatuto ascendente. É no seu affair com Sibella – que se apercebe de ter casado com “the most boring man in England” – que Louis acaba por se reconhecer a si próprio.

 

Sibella (Joan Greenwood), inatingível para um assistente de loja, a motivação para a acção
Sibella e Louis. O crescente estatuto de Louis faz de palco aos interesses de Sibella.
Encontro na prisão, o derradeiro negócio entre Sibella e Louis.

 

Os seus encontros com Sibella trazem consigo uma certa vingança contra o homem que a escolheu, mas os assassinatos e a respectiva ascensão social de Louis têm também um efeito transformativo em Sibella, perante a oportunidade de relacionamento ducal. Motivado pelo seu contacto com a viúva Edith (Valerie Hobson), também Louis projecta em si algo que idealiza no estrato social que agora ocupa: uma companheira virtuosa, recatada, do lar. O ideal britânico da classe privilegiada. Acontece que nem Louis está fadado ao privilégio, nem Sibella tem o luxo da simpatia da classe alta, como aprenderíamos em Parasite (2019). Kind Hearts and Coronets tem uma admirável qualidade auto-destrutiva dentro de si, uma que lhe permite assassinar Alec Guinness vezes sem conta. Contudo, a “projecção da Grã-Bretanha e do carácter britânico” que Michael Balcon postulava vem desta ambivalência wildiana que demonstra perante a violência e a mortandade. Um verdadeiro contrato de morte britânica.

 

O desfecho foi considerado obsceno: haveria a hipótese do crime sair impune.

 

Hugo Dinis