A Condição Terrena : uma semana com o Terror Jugoslavo

Hugo DinisNovembro 1, 2024

Agora que morreu, tudo o que dissermos sobre ela é verdade, disse-o num encolher de ombos. A frase é de uma das personagens laterais de Sveto Mesto (1990, “A Holy Place” de Djordje Kadijevic), um velho agricultor que fala da falecida filha do mestre, já muito envolta em mistério e suspeição por toda a propriedade. A procura de filmes de terror para ver por ocasião do mês de outubro levou-me inusitadamente a passar uma semana a assistir a produções sérvias, ora marcadas pelo folk lore eslavo, ora pela realpolitik dos seus próprios tempos. Esta noção jugoslava de lore, sobejamente explorada pelo folk horror, de que o tradicional e o próprio folclórico estão em constante mutação não só me fez lembrar uma espécie de prima afastada do famoso “print the legend” Fordiano, como uma ideia peculiarmente próxima da identidade nacional. O filme de Kadijevic, à beira do final da ideia de Grande Jugoslávia de Tito, é uma prova disso mesmo: simultaneamente um sinal dos tempos e um regressar ao passado. “A Holy Place” reconta a história de Viy, a fábula gótica de Gogol que motivou não apenas esta adaptação, como também a de Yershov e Kropachyov em 1967, tida como o primeiro filme de terror soviético com distribuição nacional da Mosfilm, e a de Bava no seu La Maschera del Demonio (1960).

Sveto Mesto / “A Holy Place” (1990) – A morte da jovem filha de um alto proprietário é ritualizada e lança um espectro por toda a narrativa.

 

Viy, o demónio de Gogol, é uma criatura que confronta o imaginário russo com as suas próprias crises de fé e perversões sexuais. Nele, um estudante de teologia é instado a fazer uma vigília de três noites pela tal falecida filha do grande proprietário da zona, abundantemente afamada enquanto vil sedutora de homens em seu redor. Mas onde Yershov e Kropachyov viram uma oportunidade para explorar o fantástico da coisa, Kadijevic dá-nos uma espécie de visão sérvia do drama: coloca-o num contexto feudal, onde os servos estão em permanente relação de dependência e abuso face aos amos, e retira-lhe a carga esotérica, deixando sempre a dúvida se os acontecimentos não poderão ter explicações mais terrenas. A filha na realidade pode ter sido abusada pelo pai, o que provocou o suicídio da mãe, e progressivamente fez desintegrar uma família que usava os serventes a seu gosto. Se dá para sentir o desespero e o niilismo, não é apenas por acaso. O desabar da antiga Jugoslávia que se daria no ano seguinte vinha enrolado neste papel de cinismo geral perante a quebra do contrato social, de crise de fé num projecto de superior ambição, e de confronto com os pecados do passado.

Sveto Mesto / “A Holy Place” (1990) – A frieza do olhar da falecida, sempre na dúvida entre o sobrenatural e o terreno no que diz respeito aos motivos da sua morte.
Sveto Mesto / “A Holy Place” (1990) – Para o aprendiz de teólogo, o contacto com o sobrenatural funciona sobretudo como um teste de fé reprovado.
Leptirica / “The She-Butterfly” (1973) – O primeiro terror jugoslavo, puro folk horror, destaca-se pela intensidade das cenas noturnas no moinho.

 

Esta é, na realidade, uma ideia que já encontramos na primeira longa de Kadijevic, de facto o primeiro verdadeiro filme de terror jugoslavo, Leptirica (1973, “The She-Butterfly“), motivo de enorme comoção entre os espectadores à data. Filmado na ressaca do final da Black Wave dos anos 60, já de si uma reacção aos constrangimentos do regime, a borboleta de Kadijevic é uma criação que fala precisamente da quebra de um ideal: um agricultor de uma pequena localidade é frustrado nas suas intenções de casar com a filha de um dos anciãos da vila e resolve aceitar um trabalho como operador no moinho local, até então fustigado pelos ataques do vampiro Sava Savanovic. A sua aparente vitória no desconforto da noite leva a aturadas celebrações e à fruição dos seus desígnios iniciais, apenas para confirmar uma vitória de Pirro. Kadijevic propõe uma identidade visual sobretudo marcada pela proximidade com a natureza e a suave opressão da ruralidade, algo que julgo ter refinado ainda mais pela altura de “A Holy Place“, mas que reforça sempre o contacto com o território e a identidade popular. Repare-se que ambos os filmes fazem ponto de honra da reprodução dos costumes locais e dos folclores colectivos das populações, dos dizeres às cerimónias e aos rituais.

Leptirica / “The She-Butterfly” (1973) – A matriz bucólica da mise en scène faz por trazer uma cor natural e uma luminosidade ao filme que mais tarde se retrai.
Leptirica / “The She-Butterfly” (1973) – O recurso a planos de pormenor para criar suspense nas cenas do moinho.
Variola Vera (1982) – A construção de personagens idiossincráticas forçadas a coexistir num espaço limitado sob o espectro da doença.

 

Ao entrar na década de 80, já as tensões sociais se cristalizavam nos círculos de Belgrado e de outras metrópoles jugoslavas. O que durante a Black Wave dos anos 60 eram murmúrios em surdina, na companhia da proximidade ocidental dos eighties passam a lamentos e fúrias. Disso é prova o abertamente crítico e claustrofóbico Variola Vera (1982, de Goran Markovic), um registo de body horror que procura ilustrar, com boa dose de liberdade criativa, a última pandemia de varíola da Europa, de 1972, na antiga Jugoslávia. Markovic imagina um contágio com laivos de orientalismo para fechar um conjunto de personagens num hospital de Belgrado, ao mesmo tempo que não deixa de lançar um olhar à forma como os poderes burocráticos variam entre o incompetente e o fútil para evitar que a pandemia se espalhe, mas sobretudo que a população saiba dela. Variola Vera não deixa de ter um travo de exploitation pela forma como são retratadas as variadas vítimas nos seus avançados estados de putrefação, mas consegue ser capaz de não deixar nunca de construir personagens multidimensionais por detrás delas. A convivência espacial entre um médico desmazelado e imprudente, a jovem mulher de um burocrata de alta patente e o jovem colega por ela impressionado, o chefe de serviço cobarde, ou o diligente e frio epidemiologista de fato de contágio completo que lhe faz parecer mais preparado para um comício do KKK do que para uma pandemia, resolve-se numa ebulição de tensões por vezes dramáticas e por vezes macabras, mas sempre com um olho à crítica política e social.

Variola Vera (1982) – Solitário e abandonado, o epidemiologista de serviço surge como uma prenúncio de morte e um oásis de ponderação entre o caos.
Variola Vera (1982) – O espectador é colocado na primeira pessoa na última cena: os heróis são apresentados como sendo os burocratas de serviço.
Davitelj Protiv Davitelja / “Strangler vs. Strangler” (1984) – Num filme marcadamente urbano, são frequentes as representações de perseguições desenfreadas em ruas e ruelas esconsas e sombrias.

 

A condição jugoslava urbana de meados da década de 80 é, de resto, a pedra de toque de Davitelj Protiv Davitelja (1984, “Strangler vs. Strangler” de Slobodan Sijan). Pontuado por uma voz off que nos explica que a condição de metrópole de Belgrado tem vindo a evoluir ao longo das décadas, mas que a esta falta ainda o último ingrediente para isso, um serial killer digno desse nome, “Strangler” é um registo de tal forma actual que podia ter sido feito hoje. Sijan explora a condição masculina a partir de um assassino vendedor de flores cujos impulsos macabros apenas se materializam quando encontra mulheres que lhe recusam comprar os cravos que vende nas ruas de Belgrado. Não podiam faltar as habituais mommy issues, mas é a ligação quase telepática entre este homem e um vocalista de uma banda levemente punk que faz com que este último componha uma música deliciosamente orelhuda sobre o novo serial killer que faz sensação na cidade e contribua para a sua mitologia. No fundo, quer o vendedor de cravos quer o músico representam duas faces de uma Jugoslávia urbana na profundeza da sua crise identitária, perdida entre o desligar comunitário e a promessa do ocidente. As casuais e brutais cenas de violência contra mulheres que estes dois indivíduos irão protagonizar não estariam fora do registo de trabalhos modernos como “The Golden Glove” (2019, Akin). Tal como Variola Vera, “Strangler” faz crítica social, ainda que de uma forma marcadamente satírica, reproduzindo a indiferença das instituições e do espaço mediático como uma farsa que se arrasta até ao fim. Pouco anos volvidos, o sonho da Grande Jugoslávia iria ruir, não por falta de avisos, mas essencialmente sob o peso de uma massa urbana desiludida com a sua condição terrena e com a quebra do contrato social prometido por Tito, com mais ou menos serial killers, pandemias e vampiros à mistura.

Davitelj Protiv Davitelja / “Strangler vs. Strangler” (1984) – A primeira vítima. O imediatismo da realidade do primeiro confronto com a morte.
Davitelj Protiv Davitelja / “Strangler vs. Strangler” (1984) – Para além da sua conotação passional, os cravos representam o movimento laboral jugoslavo. Aqui, um pretexto para a matança.

 

Filmes abordados

Sveto Mesto / “A Holy Place” (1990) de Djordje Kadijevic

Leptirica / “The She-Butterfly” (1973) de Djordje Kadijevic

Variola Vera (1982) de Goran Markovic

Davitelj Protiv Davitelja / Strangler vs. Strangler” (1984) de Slobodan Sijan

 

Davitelj Protiv Davitelja / “Strangler vs. Strangler” (1984) – Sijan dá-nos dois serial killers com mommy issues, duas faces da mesma moeda: a alienação e o fascínio pelo macabro.

 

Hugo Dinis