A Complete Unknown, de James Mangold: Bob Dylan não está aqui

André Filipe AntunesFevereiro 6, 2025

É comum ouvir-se, em certos cantos da cinefilia, o adágio de que Walk Hard: A História de Dewey Cox “matou” a viabilidade do musical biográfico. Protagonizada por John C. Reilly, a sátira de Jake Kasdan aos estereótipos das histórias de ascensão-queda-redenção de dramas contemporâneos como Ray (Taylor Hackford, 2004) e Walk the Line (James Mangold, 2005) foi, no seu tempo, um fracasso de bilheteira, mas alcançou nos anos que se seguiram o estatuto de clássico de culto. De tal forma que acabou por redefinir de algum modo o género que satirizou: nos 18 anos que passaram desde o seu lançamento, sempre que Hollywood produz um novo biopic musical sobre uma qualquer figura cultural do século XX, este é invariavelmente comparado a Walk Hard e analisado à luz dos clichês que este último tão bem identificou. Os melhores exemplos do género conseguem sobressair e manter a cabeça erguida; os piores (a grande maioria) sucumbem à comparação e são alvo de chacota.

Claro está que dizer-se que Walk Hard “matou” o que quer que fosse é manifestamente exagerado. Por se tratar de um clássico de culto, valorizado sobretudo na “bolha” de internet, mas sobretudo porque, na era da crise de identidade do cinema industrial norte-americano, o biopic musical vai sendo um dos últimos “irredutíveis” que permitem a existência de cinema para adultos com retorno financeiro viável. Só no último ano assistimos a dramatizações da vida e obra de Bob Marley, Amy Winehouse, Maria Callas, Pharrell Williams (modo Lego) e Robbie Williams (modo primata), em repetição constante de uma fórmula que, melhor ou pior, continua a ser uma aposta segura seja em receitas de bilheteira ou no prestígio dos prémios da indústria.

A fórmula está bem e recomenda-se, portanto. E continua a ter frutos: os primeiros dias de 2025 trouxeram às salas portuguesas mais um exemplo do género sob a forma de A Complete Unknown, filme que retrata os primeiros anos da carreira de Bob Dylan (Timothée Chalamet) da meteórica ascensão (lá está a palavra outra vez) no seio da música folk e de protesto, à polémica mudança de registo que em 1964 viu o Nobel da Literatura trocar a guitarra acústica pela elétrica e ajudar a redefinir o paradigma da música popular da segunda metade do século XX.

 

Timothée Chalamet

 

A receita, sendo familiar, tem contudo alguns pontos de interesse particular. Primeiro porque A Complete Unknown chega pela mão de James Mangold, cineasta-tarefeiro por excelência e responsável por Walk the Line, biografia de Johnny Cash que há 20 anos ajudou a escrever o manual de instruções para este tipo de proposta. Depois, e mais importante, porque ao contrário do que acontece com figuras como Freddy Mercury ou Elton John, a vida e a(s) persona(s) de Dylan, ainda hoje tão misterioso e contraditório quanto celebrado, não encaixa nos lugares-comuns e redundâncias a que estes filmes nos habituaram — algo que Todd Haynes sabiamente reconheceu em 2007 com os seus múltiplos retratos da “essência” de Dylan em I’m Not There.

Mérito para Mangold e para o seu co-argumentista Jay Cocks, o filme reconhece a futilidade da tarefa e não tenta iluminar as sombras da sua figura central — pelo contrário, reclama-as como suas. O Dylan de Chalamet surge-nos menos como uma personagem do que como uma força da natureza, chegando a Nova Iorque no início da narrativa já completamente solidificado como o artista que viria a transformar a música norte-americana. Ao longo das mais de duas horas do filme, várias são as personagens que o questionam sobre as suas origens, obtendo apenas respostas vagas sobre “a feira”, (quando não meramente o silêncio). É uma escolha elegante que tem dois efeitos práticos: ao mesmo tempo que leva o foco do filme para as músicas e a proficiência técnica do realizador e do seu protagonista (Chalamet aprendeu durante anos a tocar guitarra e teve aulas de canto), permite também fintar de forma engenhosa a forma clichê como o biopic tende a retratar as dificuldades do processo criativo, geralmente ilustrado da forma mais simplista e banal possível. Aqui tal não é defeito, é feitio: que dificuldades estavam à espera de ver? Falamos de Bob Dylan.

É de longe a escolha mais interessante que A Complete Unknown faz. Infelizmente, o filme de Mangold não tem o rasgo de substituir a “jornada do herói” do seu protagonista por algo diferente, deixando a história órfã de ímpeto narrativo. Acaba por se assemelhar mais a um filme-concerto do que a uma biografia, uma sucessão de recriações iconográficas e acontecimentos conhecidos e bem documentados (a foto de capa de The Freewheelin’ Bob Dylan, os duetos íntimos com Joan Baez, a infame atuação em Newport’65) musicados ao som de algumas das mais geniais letras e composições do último século. Entretém no momento, mas não deixa marca digna de registo.

 

Timothée Chalamet & Monica Barbaro

 

É frustrante, até porque há aqui a sugestão de alguns caminhos passíveis de serem explorados. Existem ecos de Amadeus na relação Mozart/Salieri entre Dylan e várias personagens na sua órbita, nomeadamente Joan Baez (Monica Barbaro) e Pete Seeger (Edward Norton). Ocasionalmente, as reações que as músicas do primeiro provocam no mundo que o rodeia — sublinhe-se uma excelente sequência na primeira metade em que, em plena crise dos mísseis de Cuba e sob a iminente ameaça nuclear, Baez vagueia pelas ruas pré-apocalípticas de Greenwich Village até ser resgatada do caos pelo assombro de interpretação de “Masters of War” — sugerem um filme preocupado com o potencial da arte enquanto objeto político (mesmo que essa não seja necessariamente a intenção do seu criador). Do mesmo modo, quando Dylan dispara na direção dos gatekeepers de Newport que as suas músicas “não mudaram nada” e não salvaram John F. Kennedy ou Malcolm X, damos por nós a concordar e, quem sabe, a transpor a impotência do ativismo político face a influências muito mais poderosas para os dias de hoje.

 

 

Infelizmente, talvez seja aqui que as limitações de Mangold, realizador sempre seguro mas raramente superlativo, mais se fazem sentir. Talvez alguém com outro rasgo autoral pudesse alcançar de forma mais profunda essas nuances temáticas. Da maneira que as coisas estão, o melhor que temos é uma sucessão de planos de personagens secundárias a olhar assoberbadas para Dylan e a questionarem-se “porque é que não são elas a escrever aquelas canções”? Talvez seja porque Bob Dylan só há um. E passado todo este tempo, continuamos a questionar-nos quem será.

 

André Filipe Antunes