“A noite passada sonhei que à luz da piscina vi o Terby a cambalear junto ao arbusto dos crisântemos, a alimentar-se delicadamente de uma flor cor-de-laranja.”
Bret Easton Ellis – Lunar Park
One From the Heart, de Francis Ford Coppola, Julho 2024, Portugal, restaurado, distribuição da Midas Filmes. Uma das minhas baleias brancas – o uso da expressão é quase de certeza inadequado – e apesar de não ser Um Verão com Maurice Pialat, a estreia mostrou-se de uma moderada e bonita sincronização pelo país, em particular no enquadramento escolhido pelo Batalha Centro de Cinema, com o filme a abrir as sessões “Oásis 2” ao ar livre na Praça da Batalha, com o mote da ‘Noite Americana’, numa belíssima sessão que fizeram na passada sexta-feira à noite, cheia e a céu aberto. Em Lisboa, infelizmente, sem cabriolé: “This is the garden of the Taj Mahal”, sugere a artista circense quando chega ao drive-in sobre a cidade, no planalto desértico a que Hank a leva.
É provavelmente a sequência mais bela do filme, por razões simples. Entre uma carreira itinerante com irmãos trapezistas e sob o jugo dos seus aparentes pais/patrões (e lembramo-nos aqui rapidamente de uma outra vidente sobre jugo familiar, e diga-se, com problemas mais intensos, que é Sophie Marceau em My Nights Are More Beautiful Than Your Days, 1989, de Zulawski) Leila parece ser a única personagem de genuína coluna moral nesta novela, alegre e inocente, para espanto de Hank – “You never went to high school? – No. – Listen. Did you ever have a boyfriend? Ever went to the drive-in? – No.” – certamente mais do que o próprio, que a deixa para trás imediatamente no dia a seguir, depois de lhe pedir que use os seus dons de vidência para espiar o paradeiro da namorada Frannie (Leila avisa com justeza, “If you wanna get rid of a circus girl, all you gotta do is close your eyes; Then she disappears” – e cumpre), certamente mais do que o casal paralelo, a similarmente desencantada Frannie e o trapaceiro Ray, o seu affair, empregado de mesa que finge ser pianista, player que simula querer ficar com Frannie. Voltaremos à mediocridade do casal original, mas Leila, dizia, não está a fingir a sua efervescente – como duas velas faiscantes – adoração a Hank.
Por alguns momentos, precisamente na noite americana por cima de Vegas, de uma mestria técnica e estética fabulosa (como em todo o filme – além do visível, lembremo-nos de que é inteiramente rodado em estúdio), o que brilha é a sinceridade. Há quase dez anos atrás vi um ensaio visual extraordinário no IndieLisboa sobre a cena final de Grease (1978) – e cito-o há quase dez anos; dezenas de páginas poderiam ser escritas sobre Grease, e assim é por ser um filme de personagens absolutamente sinceras: desenganem-se os leitores que possam pensar que há alguma relação positiva necessária entre naturalismo e sinceridade, antes pelo contrário – não é por o carro voar para o céu no final, nem é por nenhuma pose de estilo, que esse filme não é sincero ao máximo. E neste momento em One From the Heart, com Leila sobre a corda, Leila sobre o carro, Leila em néon sobre Hank, temos o nosso momento sincero de fantasia e de elevação.
Isto esfuma-se (como ela) no resto do filme; resta-nos a fantasia dos medíocres. Hank e Frannie são um casal há cinco anos, e separam-se neste dia de 4 de Julho, estão com outros, e voltam a estar juntos no final da noite. Tudo bem até aqui – mas estes dois não são mesmo grande coisa enquanto pessoas, ao que acrescentamos ainda a personagem do falso pianista Ray e a de Moe (um excelente Harry Dean Stanton), melhor amigo de Hank mas que se envolveu com Frannie na “noite de Ano Novo”.
No início do filme, Hank e Frannie têm uma discussão que põe a claro as suas incompatibilidades: ele oferece-lhe a escritura da casa, ela oferece-lhe bilhetes para “Bora Bora” – e ao longo do filme, continuam a querer encontrar-se neste meio caminho irreconciliável: Hank quer que ela volte para casa, por razões de inércia, maioritariamente, ela continua por força a querer apanhar um avião para “Bora Bora”, para uma nova vida, o que quer que ache que isso seja.
É tudo um pouco estúpido, digo estúpido no sentido psicológico das duas personagens, nada nos parece representar, apesar de todo o brilho e luminosidade, uma saída do e ao medíocre – no fim voltam a estar juntos exactamente iguais ao início, o que não parece constituir grande agoiro, ou alguma evolução. Ora, estou plenamente consciente de que tudo isto é propositado, de que o jogo do filme é o do contraste entre o enlevo glitzy das luzes-promessa americanas e a “banalidade” dos protagonistas. Mas enquanto o colega Gil Gonçalves, por exemplo, viu na “vulnerabilidade de duas pessoas simples”, profundidade e “o amor mostrado em todas as suas dimensões”, eu não tive, pelo menos desta vez, a compaixão necessária por estes dois atrapalhados. Não mostram ter grande fibra no coração: e porque não a ter? Se há ocasião para isso, um musical é certamente das maiores oportunidades. Tom Waits compreende o assignment um bocadinho melhor. Estamos, de qualquer modo, longe do “poder das palavras”.
Ocorrera de toda a maneira um desencontro entre o filme e as minhas esperanças em relação a ele. Não é grave: a experiência oposta é recompensadora em ordens de magnitude muito maiores. Falo num sentido stendhaliano, esse que em Florença, a observar Giotto, “chegou ao ponto em que uma pessoa enfrenta sensações celestiais”. Foi uma questão de paladar. Não tenho quaisquer dúvidas quanto à qualidade do musical de Coppola. De resto, pensei saber quem me poderia auxiliar: Bertrand Bonello estava em sala com A Besta, protagonizada por Léa Seydoux, e foi para onde me dirigi depois. Cita-se a sinopse, que a premissa não é simples:
Em 2044 num mundo dominado pela Inteligência Artificial, a maior parte das pessoas sente-se “inútil” devido às suas emoções. Muitos optam por realizar uma operação que os liberta desse fardo, permitindo-lhes focar-se mais no trabalho. Gabrielle (Seydoux) toma essa decisão, sendo levada a visitar as suas vidas passadas durante o procedimento, onde encontra sempre o mesmo homem, a quem se sente inexplicavelmente ligada: Louis (George MacKay) – existindo portanto o segmento de 2044, o de 2014, e o de 1910, numa tripartição com direito a proporções de tela diferentes, jogo que nos faz lembrar Jia Zhangke em Se As Montanhas se Afastam, mas ao contrário: aqui, é o futuro mais distante aquele em 4:3.
O filme abre de forma primorosa e directa: nos primeiros cinco minutos assistimos ao cruzar de Gabrielle e Louis num salão de chá parisiense (1910), recordando um encontro original, em Nápoles. Aí, aparentemente, Gabrielle terá, numa conversa em confidência, revelado algo peculiar de se declarar a um estranho: que desde muito jovem teria no seu interior a sensação de uma desgraça iminente, que algo estranho e terrível se iria eventualmente abater sobre ela, obliterando-a (Penso que foi essa mesmo a palavra que usou: obliterar – sublinha Louis). Desde modo, temia que algo no decorrer da sua vida, algo terrível e inominável, levasse um dia à sua aniquilação (aniquilação, também: a destruição de fronteiras). Até agora, nada aconteceu. No entanto, Louis propõe ajudá-la, ficando “de guarda” para que a besta escondida não chegue.
Em entrevista ao Público, o realizador Bertrand diz-nos que este filme (adaptação livre da novela de Henry James A Fera na Selva) começou com o desejo de fazer um melodrama, e é nisso que se funda este eterno retorno do encontro entre Gabrielle e Louis, contando também uma “história dos sentimentos: em 1910 eles são muito expressos (…), em 2014 são reprimidos; e em 2044 são suprimidos”. A Gabrielle de 2044, no entanto, resiste a esse suprir: é a falha na máquina (a purificação só não funciona com 0,7% da população) e este “romantismo com o seu quê de malsão” é o que a predispõe ao desastre final, enfim, ao desastre sempre… mas o que acontece, afinal, aos dois? Em 1910, Louis e Gabrielle morrem numa inundação da fábrica de bonecas de porcelana e de celulóide que Gabrielle supervisiona. Em 2014, numa decisão surpreendente de argumento, inspirada claramente num assassino muito parecido da História real, Louis é um perturbado incel, que por azar escolhe Gabrielle como vítima, e a mata, apesar dos esforços desta para o ajudar (há algo que ela parece intuir como transversal aos tempos). Em 44, a morte é outra, mas essa tem mesmo de ser vista. Há uma vidente no século XX que põe a coisa em pratos limpos – (em 2014, uma cartomante por videochamada, numa de várias homenagens lynchianas):
Há um desastre natural, mas não aquele de que todos falam. Há uma besta. Uma besta pronta a saltar. Há um homem que só consegue fazer amor nos seus sonhos. Há uma escolha difícil a fazer, uma sensação de que não pode ser feita sem a possibilidade de destruir tudo. Como uma dor por dentro que te devora e te queima gentilmente. Mas o mais destrutivo é esta não-escolha. Uma catástrofe, mas não aquela em que estás a pensar. A tua hesitação é que traz a catástrofe.
Esta profecia paira pesada sobre todo o filme. Num certo sentido, explica-o. Mas o que é a Besta, afinal? Conhecemo-la? Os nossos leitores arriscaram tentar uma resposta? Seria fácil dizer que a besta é o individual Louis, e vários planos empurram-nos para essa noção (uma deflagração na fábrica de bonecas, o fumo de um vape demoníaco), mas penso que é uma proposição insuficiente, não suficientemente atenta. Há algo na revelação final, na declaração de amor “purificada”, completamente aterrorizadora – há algo sobre bonecas (quase 150 anos depois da fábrica, no Paris de 2044, há seres humanos artificiais com essa designação, que servem para tudo; uma propõe sexo a Gabrielle, ao que esta responde És uma boneca, Kelly).
Será a besta a pobreza de uma vida interior? De um sentido de interioridade, de identidade ou humanidade, algo como aquilo que faz Gabrielle emocionar-se com um vídeo de karaoke num canal rasca de televisão, sobre um amor “sempre verde”? A incapacidade de amar na realidade, fora dos “sonhos”. Talvez outra coisa? – Uma catástrofe, mas não aquela em que estás a pensar.
Quem sabe. No início do filme, entrou na sala do UCI El Corte Inglês o vulto enorme de uma senhora, que parecia estar vestida até aos pés e a arrastar um saco ruidoso pelo chão. O ruído bizarro só parou quando ela se sentou na primeira fila. Também isto meteu um pouco de medo – lembrou-me o meu receio de um tiroteio, uma coisa antiga em mim ao ponto do atavismo. Há esta cena de Godard em Scénario du Film Passion (e porquê duas citações diferentes a JLG no mesmo texto – a assolação de um espectro?), um vulto negro contra o fundo luminoso, uma coisa de terror, vi-a pela primeira vez, completamente bêbado, numa esplanada em Faro, depois de andar a fazer imitações da chamada de Kamala Harris a Joe Biden no pós-eleição – céus, que narsa, e céus, que filme – o mundo pareceu escurecer desde a periferia da minha visão em direcção ao centro do ecrã de telemóvel, estava preso e mal piscava os olhos: “E agora a memória está aqui, e ela dita-te: uma operária é despedida pelo seu patrão; ela apaixona-se por um estrangeiro, que veio rodar um filme na região; a esposa do patrão também se apaixona pelo estrangeiro…” (…)
E lá estou eu, a encaminhar-me para a saída da sala (tudo isto ocorre antes de eu me pôr na rua a pensar no que seria a Besta para Bertrand Bonello), e por um momento viro-me para trás, olho para a sala ao contrário, ou seja, junto do ecrã, para as quatro ou cinco pessoas ainda sentadas e sinto esta vontade irracional de me dirigir a elas – entrelaço as mãos junto à cintura em expectativa de alguma coisa. É um movimento que está a ocorrer em transversal ao tempo. Onde estou eu? Estou no Centro Cultural Olga Cadaval. Estou na sala 4 do Monumental. Serei talvez um navio, no sentido em que Branquinho da Fonseca fala em navio, um soldado, no sentido em que Beyoncé fala em soldado. A olhar para as pessoas ainda na sala sinto que, pelo menos até atravessar a porta, estou a salvo: é uma daquelas situações extraordinárias que podem ocorrer dentro de salas de cinema. Não as conheço de lado nenhum, mal as vejo. É extraordinário.