25ª Edição da Monstra – Festival de Animação de Lisboa

EquipaMarço 31, 2025

A 25ª Edição da Monstra passou por várias salas de Lisboa neste mês de Março de 2025. A Áustria foi o país convidado desta edição, com retrospectivas e homenagens ao cinema de animação daquele país, tendo o programa percorrido o sempre favorito anime japonês, a animação francesa, chinesa, entre tantas obras de vários outros países. A Cinemateca foi também parceira atenta da Monstra, exibindo filmes históricos deste curtas seminais geométricas a desenhos animados de propaganda da segunda guerra mundial. A cerimónia de encerramento ocorreu no dia 30 no São Jorge. Percebes, de Alexandra Ramires e Laura Gonçalves, soma e segue com o Grande Prémio Vasco Granja – SPA. O filme tem feito um longo percurso de prémios e destaques ao longo do último ano. Nas longas internacionais, Sanatório sob o Signo da Clepsidrados irmãos Quay, é o vencedor do Grande Prémio Longas – RTP. Esta é a terceira longa-metragem de Stephen e Timothy Quay, dois mestres com uma longa carreira no cinema de animação e uma estética inconfundível. Nas curta-metragens, o filme escolhido para o Grande Prémio Curtas – RTP é Homens Bonitosde Nicolas Keppens. O filme explora temas como a solidariedade e a insegurança na idade adulta e foi nomeado para o Óscar de Melhor Curta-Metragem de Animação. Foram homenageados com um Prémio Carreira o realizador estónio Priit Pärn e Manuel Matos Barbosa, membro do conselho curatorial do CINANIMA, um dos principais divulgadores de cinema de animação em Portugal. A Monstra decerto regressará em 2026 e a Tribuna do Cinema lá estará, como sempre, para acompanhar.

Ficam agora as nossas habituais críticas a alguns dos filmes que por lá vimos:

 

Sanatório sob o Signo da Clepsidra de Stephen e Timothy Quay – Grande Prémio Longas — RTP

Vencedor do Grande Prémio Longas RTP na competição de longas-metragens da Monstra 2025, Sanatório sob o Signo da Clepsidra elude uma descrição fácil. O mais recente projeto dos celebrados animadores stop-motion norte-americanos reencontra o autor polaco Bruno Schulz (que os irmãos gémeos adaptaram no seu mais célebre trabalho, Street of Crocodiles, de 1986), em mais um exercício visual onírico, surreal, a espaços sinistro, frequentemente confuso mas não por isso menos cativante.

A história… há uma história? A sinopse oficial situa-nos num comboio esquecido na Galiza, onde um homem, Jozef, viaja rumo a um sanatório para visitar o pai moribundo — apenas para, à chegada, ser informado de que a morte ainda não ocorreu, e de que aquele lugar possui uma relatividade muito própria, flutuando no tempo e no espaço a meio caminho entre o sonho e a lucidez. Mero pretexto, claro, para um macabro poema visual, com uma linguagem experimental que combina animação stop-motion, live action, duplas e triplas exposições de imagem, inverte e repete movimentos (uma repetição que começa a cansar e vai perdendo o efeito à medida que o filme avança)… é um filme que parece querer moldar o tempo cinematográfico, convidar o espectador a deixar-se levar pelo sono, imprimindo a sensação das imagens na retina e no subconsciente. É um objeto artístico fascinante, talvez menos um filme com conta, peso e medida. É demasiado opaco para isso. Por desígnio. Atribuir uma classificação é puramente arbitrário — é cinema que não vemos, acontece-nos.

André Filipe Antunes

 

Percebes de Laura Gonçalves e Alexandra Ramires – Grande Prémio Vasco Granja – SPA / Prémio do Público

Portugal é um país de mar e o cinema português também. Percebes, curta-metragem vencedora da Monstra 2025 e que esteve na shortlist para a última edição dos Óscares, tem um duplo significado: o do molusco, que não é rocha mas é parte dela e sabe a mar, e o do adjetivo, usado pelas gentes da terra para quem o mar é um sustento, um estilo de vida e garante de identidade — conhecem-se através dele, espelham-se nele. São algarvios, mas podíamos ser todos nós, portugueses. É essa a beleza dos grandes filmes: pegar em algo pessoal, trabalhá-lo e encontrar a sua universalidade.

Percebes é um grande filme. Que dirá mais a portugueses do que a estrangeiros, porque percebemos melhor. Também aqui há um jogo duplo: é um grande filme de animação mas também um grande documentário etnográfico, sobre o modo de vida de uma comunidade que sempre se definiu por oposição aos que vêm de fora, ao turismo de massas e a um “desapego da terra” que de algum modo todos vamos hoje sentindo. Ouvimos diálogos reais, pessoas reais, a quem Laura Gonçalves e Alexandra Ramires dão vida através da animação a aguarela, quase como se procurassem ganhar e manter forma num mundo de equilíbrios precários que ameaça apagá-las a qualquer momento. “Faz falta a noite, faz falta o inverno, como faz falta o turismo também ir embora… há certas coisas que só aparecem depois de levarem com muito temporal, muita calmaria. Assim é que elas são autênticas”. Percebes é exemplo de que a animação é muitas vezes mais real do que a realidade. E o primeiro grande momento do cinema português em 2025.

André Filipe Antunes

 

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The Colors Within de Naoko Yamada – Competição Longas

A beleza de The Colors Within pesa numa balança onde a estética não faz contrapeso com a natureza simbólica e emocional que Naoko Yamada pretende explorar na remota tradição sociocultural japonesa. Yamada inicia esta jornada de uma forma aberta, no que respeita à evoção cultural, homenageando de forma harmoniosa mas não ímpar a literatura, a música e as emoções reprimidas do país do sol nascente. Embora o argumento seja encharcado com sinopsias e sinestesias sugestivas e apesar da beleza deste filme ser propositada e objectiva, a densidade humana que pretende reunir nas três personagens principais não é rigorosa nem consegue ser verdadeiramente aprofundada, pecando pela ausência da expansão individual de Totsuko, Kimi e Rui, mas também ficando em falta alguma coesão grupal e o seu verdadeiro significado. Vislumbra-se uma suposta intenção dos elementos utilizados, mas ficam a pairar no ar os simbolismos a que Yamada recorre, no que respeita à religião, à fé e ao dom das palavras escritas. No entanto, a capacidade de Totsuko ver as cores dos outros, é a maior virtude que encontramos em The Colors Within, principalmente quando Yamada recorre ao som, à música, à melodia e aos instrumentos, sendo estes a perpetuação do seu humanismo, realçando a necessidade das emoções nos relacionamentos, não obstante a forma antiquada e retrógrada da sociedade japonesa. A expressividade que Yamada faz de forma entusiasta e absorvente dos sentimentos é de uma sensibilidade tal que a excitação e a serenidade acompanham-nos ao longo da acção, contudo, a realizadora não consegue ser concreta na abordagem da natureza da relação entre Totsuko e Kimi, arriscando muito pouco nas tentativas de fazer frente ao tradicionalismo japonês, confrontando de forma pouco clara o pudor e o decoro das relações amorosas, principalmente entre pessoas do mesmo sexo. Quase sempre acompanhado por algum recato, The Colors Within não se consegue desfazer do medo de se auto-revolucionar, ficando quase sempre pela rama na sua pretensão de honestidade moral.

Rita Cadima de Oliveira

 

A Boat In The Garden (Slocum et moi) de Jean-François Laguionie – Competição Longas

É em tons pastel, num traço fino mas aparentando o uso de um lápis de cera, que A Boat In The Garden é desenhado. A sua subtileza e doçura contrastam com a aura sombria dos tempos do pós-guerra, numa França racionada e austera. Jean-François Laguionie faz desfilar elementos simbólicos da cultura francesa e entre boinas, Renault 4CV, Torre Eiffel e Edith Piaf, vai-nos contando a história de uma família – Pierre, Genèvieve e o filho François. Sendo François o narrador, é ele que nos conta o passado bélico ouvido em memórias e a inevitabilidade paupérrima que a guerra trouxe, mas sempre com a sensibilidade a ser imperiosa neste storytelling. É na e para a natureza que Laguionie se expressa, resvalando sobre as relações parentais e um filho que se divide entre a sensibilidade materna e a austeridade paterna. Apesar da indubitável beleza da animação, denota-se uma correlação algo vaga e dispersa entre assuntos. Parecendo sempre que a abordagem do guião se assemelha a um sonho, A Boat in the Garden é também a construção de um ideal e de um imaginário pessoal que nunca chega a ser trazido para a esfera pública. Pierre, constrói um barco no espaço limitado do seu jardim, quase como um desafio à superação humana, numa espécie de jaula que representa o pós-guerra, um período de divagação entre o real e o imaginário. Mesmo em tempos de impasse, a mensagem que esta animação nos traz é a de que urge não protelar sonhos, mesmo sabendo que é obrigatório adaptarmo-nos às condições existentes, nunca abdicando de tentar o nosso progresso pessoal mas também grupal. Embora o compasso do filme seja lento e a mensagem vagarosa, causando-nos alguma impaciência, é sedutora a forma como Laguionie parece estar a comunicar com um ser imaginário, fruindo de diversos instrumentos sensoriais – o rio, a chuva, o vento, as árvores e as flores, para criar significantes em cada pessoa que assiste. No fundo, Laguionie deveria ter explorado mais o coming of age que este filme poderia ter sido, dando-nos a sensação que no fim ainda ficamos a saber menos sobre Pierre, Genevieve e François.

Rita Cadima de Oliveira

 

Rock Bottom de María Trénor – Competição Longas

A primeira longa-metragem da veterana cineasta espanhola María Trénor, a premissa inicial de Rock Bottom — uma celebração dos 50 anos do álbum homónimo do músico Robert Wyatt, explorado através de uma versão ficcionada da sua relação com a artista Alfreda “Alfi” Benge na milieu pós-hippie do início dos anos 70 — tem interesse e confere ao filme alguma boa-vontade à partida. Infelizmente, esta esgota-se rapidamente numa sucessão de más escolhas e riscos falhados que redundam numa proposta onde quase nada resulta.

O argumento é no mínimo desinspirado, carregado de diálogos óbvios (é o tipo de filme onde uma referência a Syd Barrett, ex-vocalista dos Pink Floyd, é acompanhada da frase “how I wish he was here”, num filme que decorre em 1973, dois anos antes daquele tema sequer ser gravado) com personagens mal definidas e cliché e uma estrutura narrativa sem qualquer ímpeto ou propósito; acresce ainda a falta de à vontade do elenco espanhol com a língua inglesa, que resulta em atuações que roçam o amadorismo. Nem a animação escapa bem: a técnica de rotoscoping pode ser bem utilizada, mas aqui é gritante a falta de cuidado, a fraca integração dos atores com o fundo da imagem, e uma rigidez de movimentos que transparece menos uma escolha intencional (como acontece, por exemplo, em Ralph Bakshi) e mais uma limitação de orçamento. O filme vai dando um ar da sua graça nos momentos em que abraça o surrealismo, mas até isso sabe a pouco, já que a referida técnica de captação dos atores tem o efeito oposto ao da tentativa assumida de explorar o lado psicadélico da arte de Wyatt, amarrando os visuais a um realismo e naturalidade estranhos e diminuindo o impacto da homenagem à sua música. Enfim, lamentável.

André Filipe Antunes

 

The Birth of Kitaro: The Mystery of GeGeGe de Gou Koga – Antestreias

Os anos recentes têm trazido ao cinema longas metragens baseadas, ou inseridas, no contexto das mais populares séries de anime. Attack on Titan, Slam Dunk, Haikyu!!, Demon Slayer, entre outros, têm povoado as salas de cinema portuguesas, quando no passado estas adaptações eram puramente televisivas, rondando uma hora ou menos de duração. The Birth of Kitaro acaba por ter um lugar distinto, embora seja decerto produto dessa vaga. Trata-se de um filme quase isolado do seu contexto: o manga GeGeGe no Kitaro, criado em 1960 por Shigeru Mizuki, acerca de um rapaz meio humano, meio yokai (criaturas sobrenaturais do folclore japonês), que faz a ponte entre duas realidades. The Birth of Kitaro acaba por ser uma origin story desenrolada nos anos 50 centrada no seu pai, mas principalmente na figura de um simples funcionário empresarial, de fato e gravata, enviado para uma aldeia misteriosa para tratar da herança de uma poderosa família cujo patriarca faleceu. Este funcionário, Mizuke, que encontrará provável paralelismo no espectador médio, encontra espaço como protagonista num meio povoado por super heróis, lutadores e feiticeiros. Mizuke não é nada disso, misturando o papel de observador com o de vector para a acção à medida que vai desfiando o novelo de uma trama negra, a roçar o terror opressivo. Mizuke, assolado pelo trauma da segunda guerra mundial onde foi soldado, carrega a sua própria condição de simples funcionário, proibido de amar alguém acima de si, como uma herdeira da obscura família Ryuga. A animação de traço personalizado, a narrativa inusitada, o desenvolvimento de personagem e uma individualidade que não obriga a conhecer a série para apreciar o filme fazem de The Birth of Kitaro um filme de raro interesse.

David Bernardino

 

Don’t Know What de Thomas Renoldner – Retrospectiva

Don’t Know What roça a alucinação e o delírio, sendo inegável a ansiedade e stress que nos traz ao longo da sua exibição. Esta curta-metragem experimental a preto e branco, consiste num homem a olhar fixamente para a câmara, aparentando exaltar funções basilares humanas: falar, respirar, olhar, pestanejar, focar e gritar. Dividindo-se entre uma austeridade formal e uma faceta jocosa, o filme dilui as fronteiras de género cinematográfico, questionando as abordagens clássicas aos diferentes subgéneros, combinando stop-motion, single frame editing, videoarte, entretenimento e cinema de vanguarda. Renolder elabora uma composição musical ao mesmo tempo que experimenta novos formatos para a voz humana, transformando a linguagem em musicalidade e outras formas sonoras indistintas, mais concretamente em staccato e ruídos martelantes. O mundo da abstração e do ritmo são dissecados, acrescentando potencial cómico mas também intelectual à transformação dos movimentos e à conversão de sons mais orgânicos em sons mais mecanizados. Ao fim e ao cabo, Thomas Renolder utiliza um único fotograma num método de montagem que se centra sobretudo no som, transformando a imagem realista em imagens surrealistas, estruturalistas e abstractas.

Rita Cadima de Oliveira