“I always wonder to what extent the artist aims to depict the reality of a scene. Painters capture only one frame of reality and nothing before or after it. For 24 Frames I started with a famous painting but then switched to photos I had taken through the years. I included about four and half minutes of what I imagined might have taken place before or after each image that I had captured.”
Abbas Kiarostami
Quando lemos estas palavras no ecrã sabemos que serão as últimas dirigidas ao seu público pelo realizador iraniano. Falecido à data do lançamento do filme em Cannes, “24 Frames” terá sido acabado pelo seu filho, Ahmad Kiarostami, juntamente com Ali Kamali, responsável pelos efeitos de animação. Sucedem-se, assim, 24 “planos”, numerados por ordem crescente, mas absorvidos pelo espetador como contagem decrescente até ao final da obra do cineasta. Ou até ao fim do cinema ele próprio, levando à letra as palavras de Jean-Luc Godard: “O cinema começa com Griffith e termina com Kiarostami”.
A carreira do iraniano foi marcada por um constante confronto entre a realidade e o cinema, sendo provavelmente esse o seu traço autoral mais vincado e que volta a estar latente nesta obra. Em “Close-Up” (1990) é explorada a barreira entre o documentário e a ficção, através da encenação de cenas que efetivamente aconteceram, protagonizadas pelos próprios envolvidos. A personagem principal do filme acaba por interpretar uma versão de si mesmo, fazendo-se passar por outra pessoa, abordagem metafísica também bastante presente no cinema do realizador. Em “Certified Copy” (2010), 20 anos mais tarde, volta a emergir o tema do original vs cópia. As expetativas do espetador em relação à natureza da relação que se vai desenvolvendo (ou desintegrando, ou reavivando) na tela são radicalmente subvertidas.
É, portanto, coerente que Kiarostami queira voltar a dançar entre fronteiras, neste caso entre a fotografia e o cinema, entre a imobilidade e o movimento. Não deixa de ser paradoxal que o intuito do realizador seja mimetizar de forma mais pura a realidade (o tal cinema puro de André Bazin) – acrescentando vida ao momento antes e depois da fotografia/pintura – e que, para tal, seja manipulada a imagem através de efeitos digitais, assumida e visivelmente falsos. E se na Frame 1 (pintura de Pieter Bruegel the Elder, Hunters in the Snow) é claramente percetível o momento de separação entre a imobilidade e o movimento, nas seguintes torna-se um jogo de busca pelo freeze frame, escondido no meio da animação.
Depois da clássica pintura ditar (falsamente) as regras de visualização do filme, seguem-se 23 fotografias animadas pelo cineasta, que não deixam de ser curtas metragens de aproximadamente 4 minutos e 30 segundos, criando mini narrativas ligadas por uma coerência temática e visual. Neve, chuva, ondas do mar, corvos, vacas, gaivotas e a presença humana quase sempre intuída, raramente efetiva. A figura do corvo é particularmente relevante não pairasse sobre a obra a morte do seu criador. Parece, de facto, ser intencional (quase premonitória) a recorrência neste tema, exacerbado pelos vários disparos fatais que vão surgindo na(s) narrativa(s). No entanto, Kiarostami está longe de ser um realizador niilista. As Frames 13 – gaivotas a prestarem homenagem à companheira falecida – e 16 – pato encurralado pela rede – são paradigmáticas nesse sentido. Um humanismo personificado pelos animais, mas declaradamente subtil e apenas sugerido.
O realizador convida o espetador a criar a sua própria narrativa com os elementos que vai colocando no quadro. Composições de grande beleza e detalhe, muitas vezes frames dentro de frames (janelas), que juntamente com o tempo disponível, nos permitem perder por cada (re)canto. Numa célebre entrevista a Jamsheed Akrami, em 1997, o iraniano afirmou: “Eu não quero prender e provocar os espetadores. Eu prefiro os filmes que colocam o público a dormir na sala (…) sonhar é como estar numa sala cheia e abrir a janela, deixas o ar entrar e respiras. Na minha ótica, sonhos são janelas nas nossas vidas, e o sentido do cinema é na sua semelhança com esta janela.”
Tal como a maioria das suas obras do século XXI, também “24 Frames” pode ser enquadrado numa tendência de Slow Cinema, apelando à contemplação através de uma narrativa minimalista e/ou praticamente inexistente. Irónica é a forma como esta força da passagem do tempo na imagem (imagem-tempo) seja alcançada utilizando efeitos especiais, contrastando com o cinema ao qual esta manipulação pós-produção está mais associada. Os extremos tocam-se, pois claro.
Não poderá ser subestimado o papel do som em todo este processo. Kiarostami vai jogando com o som dentro e fora de campo e adicionando banda sonora, muitas vezes impercetível se diegética ou não. Mais uma camada dentro do plano que sublinha ou contraria a ação que se vai desenvolvendo no quadro.
A imersão contemplativa que o filme provoca ameniza algumas Frames menos impactantes. No limite, o desejo do realizador pode ser cumprido por instantes, convidando ao leve dormitar. Mas importa bastante despertar na Frame 24, o inescapável Fim está por momentos. Plano com janela, mulher a dormitar à secretária, ecrã de computador com imagem parada (será?) do “The Best Years of Our Lives” (1946), música, árvores despidas lá fora balançam suavemente com o vento. Começamos a ver que a imagem do filme não está parada, slow motion que transforma alguns segundos do filme em 4 minutos, casal a beijar-se lentamente, a música intensifica-se, o vento intensifica-se, The End.
70 anos separam-nos do filme de William Wyler, filme de imagem-movimento transformado em imagem-tempo, o cinema a aproximar-se da fotografia, o movimento da quietude, a realidade do sonho. Abbas Kiarostami já não se encontra entre nós, mas o seu amor ao cinema nunca morrerá, e as obras que resultaram dessa paixão estarão para sempre gravadas na história do cinema, na história da arte, na História.
nota: em exibição na Casa de Cinema de Coimbra