2025: Onde jaz o Cinema Português?

André Filipe AntunesJaneiro 6, 2025

Terminado o ano de 2024, é tempo de olhar para os dados de bilheteira das salas portuguesas no último ano. Os números acompanham em larga escala a tendência fora de portas: uma indústria periclitante, ainda a tentar recompor-se do rombo pandémico de 2020 e apoiada sobretudo nas grande produções de Hollywood, a esmagadora maioria das quais sequelas (16 dos 25 filmes mais vistos, incluindo oito no top 10).

Paralelamente, os números disponibilizados pelo Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA) são reveladores no que à produção nacional recente diz respeito. Se a relação entre o cinema português e o seu público é um tema sempre fraturante, os dados apontam à primeira vista para um ano de relativo sucesso, com uma duplicação da quota de espectadores por comparação com 2023, de 2,7 para 4,5%. Números miseráveis se comparados nos respetivos mercados com os 17% da Suécia, os 19% de Espanha, e uma autêntica nota de rodapé se equiparados aos 44% de França, mas um desenvolvimento positivo em todo o caso.

O balanço não termina aqui, contudo. Sim, é verdade que este ano o cinema português aumentou a sua quota de mercado, pelo menos à primeira vista. Mas um olhar mais atento denúncia a ilusão. Uns esmagadores 70% dos espectadores de cinema português encontram-se concentrados em dois filmes: as comédias Balas e Bolinhos – Só Mais Uma Coisa, de Luís Ismael (quase 250 mil espectadores e o único filme português entre os dez mais vistos do ano), e Podia Ter Esperado Por Agosto, produção da SIC/Opto da autoria de César Mourão (mais de 100 mil).

Retire-se essas obras e o panorama é desolador. Nenhuma outra produção nacional chegou sequer perto da marca dos 50 mil bilhetes vendidos; Grand Tour, coroação internacional de Miguel Gomes que valeu ao cineasta o prémio de Melhor Realizador em Cannes (e foi um dos 10 filmes do ano para a Tribuna do Cinema), por pouco não passou dos 10 mil, com uma média de cerca de 11 espectadores por sessão; pior que tudo, num ano de fulgurante exibição nacional (estrearam-se 71 filmes em 2024), praticamente dois terços não ultrapassaram sequer a barreira dos mil espectadores.

Acredito que estamos perante um importante ponto de inflexão no cinema português. Por um lado multiplicam-se os apoios à produção, o número de obras produzidas, e uma nova geração de cineastas vai despontando com mais oportunidades do que no passado (muito longe do horrível “ano zero” de 2012). Por outro lado, o divórcio entre o público e os filmes portugueses é cada vez mais acentuado, com a esmagadora maioria das produções nacionais a caírem no mais abjeto esquecimento — a falta de divulgação e incapacidade, ou desinteresse, em combater certos estereótipos do que é o “cinema português” a isso ajuda — e a inação no terreno de um governo e de um ministério da Cultura ideologicamente distantes do setor alimentam ansiedades e receios antigos (estaremos assim tão longe de 2012? Talvez seja tempo de refletir).

Quero regressar a Miguel Gomes. Durante a roda de imprensa de Grand Tour — assim como durante a campanha gorada para o Óscar de Melhor Filme Internacional (não chegou à shortlist) — o cineasta fez por diversas vezes questão de enaltecer a “liberdade” do cinema português como consequência positiva da falta de uma indústria codificada. Cite-se a título de exemplo a sua entrevista à norte-americana Indiewire:

Portugal não tem uma indústria de cinema. Por causa do contexto económico, não temos um grande mercado. Isto é mau em si; por outro lado, permite ao cinema português escapar um pouco da tirania da indústria, (…) [podemos] ter um certo grau de liberdade porque não há grandes expectativas. Por isso é que muitos filmes portugueses são bastante peculiares, são como protótipos. Não vêm de uma linha de montagem. Por isso de certa forma, se se tiver algum talento, é possível fazer filmes muito pessoais que não se parecem com nenhum outro filme.

Dias depois, enquanto refletia sobre os méritos e os “pontos cegos” da tese de Gomes, deparei-me com uma crítica particularmente dura a Grand Tour, escrita pelo comunicador e divulgador cultural Rui Alves de Sousa na sua página na rede social Letterboxd, que contra-argumentava:

É fácil falar de liberdade no cinema num país que despreza, ou fica indiferente, à produção nacional de filmes. (…) O cinema português só seria livre realmente se, numa conjuntura industrial e concorrencial, mesmo assim, os espectadores preferissem ‘outro tipo de cinema’. Com a falta de meios, de indústria e tudo o mais, o cinema português não é livre: é antes desconhecido, e por isso é aparentemente ‘livre’, permitindo a alguns fazerem os seus filmes que, melhores ou piores, lá vão surgindo, entre produções estatais e outras privadas. Na parte dos filmes subsidiados pelo ICA, essa liberdade existe porque, em suma, ninguém quer saber.

Nada disto é novo. É, em suma, uma destilação contemporânea da velha discussão dos “filmes para Bragança ou filmes para Paris”, que divide o cinema português há precisamente meio século. Há, no entanto, uma diferença: ao longo das décadas, este era sobretudo um debate em torno da tipologia de filmes que devia existir em Portugal. Por outras palavras: que filmes se deviam produzir, sabendo que as fragilidades do setor ditariam que apenas um punhado de obras podiam ver a luz do dia?

O cenário hoje é outro. Claro, ainda há falta de meios e mantém-se o subfinanciamento crónico do cinema português, havendo por isso um longo caminho a percorrer. Mas os filmes existem, e em muito maior quantidade do que no passado — para que se tenha uma ideia, em 2004 foram estreadas 22 obras, mais de três vezes menos do que no ano passado. Nos últimos anos têm-se multiplicado os prémios em festivais internacionais e, dentro de portas, propostas como A Herdade ou Variações vão mostrando que há espaço em Portugal para o cinema dito “comercial”, fora do circuito da comédia revisteira, dos remakes dúbios ou da “televisão filmada”.

É tempo de desbravar terreno. De encontrar caminhos que façam com que o que se produz chegue a quem pode (e quer) ver. Distribuidores e exibidores não podem nem devem ter medo de apostar no cinema português, de o apoiar e de o divulgar junto do público. Meias medidas, como as risíveis 3 salas da NOS Lusomundo Cinemas dedicadas a filmes portugueses (3 em mais de 200) não chegam. É possível, e desejável, fazer cinema que conjugue a liberdade criativa dos seus autores e o interesse dos espectadores. Caso contrário, continuaremos a produzir “filmes para ninguém”. E as dores de crescimento do cinema português tornar-se-ão numa atrofia irreversível.

 

André Filipe Antunes